[fotos daqui]
Li o Livro.
José Luís Peixoto instiga a curiosidade até com o título do seu último romance. Mas que livro se digna a chamar-se Livro? Será um título que peca pela simplicidade ou, pelo contrário, pela mania das grandezas?... É um daqueles casos em que convém não desvendar as razões, para que estas sejam descobertas ao longo da leitura... embora já tenha encontrado, depois, alguns artigos pela net que revelam mais, gostei de na altura não o saber e continuo a achar que faz toda a diferença ler este Livro sem rede.
Não foi o primeiro livro de Peixoto que li. Já tinha antes lido Morreste-me, emprestado por uma amiga a quem tinha recentemente falecido o pai e que por essa e outras razões mais literárias o lera com extrema sensibilidade, insistindo mais tarde, apaixonadamente, em emprestar-mo para que também o lesse. Tivera também um contacto com o Antídoto, a partir do álbum com o mesmo nome dos Moonspell, que me aguçou a curiosidade por um autor da nova geração tão respeitado, que se alia à música de metal, que veste de preto, que usa tatuagens e piercings (sim, talvez eu prefira gente estranha).
Peguei no Livro com alguma relutância, porque às vezes cansa ouvir tantas críticas positivas ao mesmo autor, ainda que à partida nos pareçam justas. Não sei... parece-me haver tanta vontade em publicitar os livros de Peixoto que acabo por desconfiar... será toda aquela vénia merecida afinal? Lera já um livro dele e embora tivesse gostado não senti nenhuma revelação.
Vi José Luís Peixoto ao vivo dias antes de me oferecerem o Livro. Toda a gente parecia gravitar à sua volta e eu provavelmente não fui excepção. Gostei de o ouvir. Fiquei com vontade de ler mais.
O Livro centra a narrativa na emigração portuguesa para França nos anos 60. Está lá tudo: as cenas da aldeia, a perigosa viagem rumo a Paris nos tempos da ditadura, o rebentar do 25 de Abril, as saudosas e sucessivas viagens de regresso, em férias... quem não se lembra das famosas casas de emigrantes que eram motivo de falatório e destaque entre as pessoas da aldeia que ficara para trás? Eu ouvia falar delas, quando ia, nova, à aldeia dos meus avós: questionava-me para que serviam aqueles casarões desertos a maior parte do ano, ouvia os comentários dos locais e as expressões afrancesadas dos emigrantes que já não conseguiam desabituar-se do francês preso à língua... o Livro retrata toda essa realidade de forma profunda e sensível, através de uma prosa deliciosa nos pormenores... cada palavra parece estar no sítio certo. A narrativa é crua e grave, mas também é doce, humorada, jocosa e afectuosa. As personagens vivem, saltam das páginas em toda a sua dimensão humana: sentimos os seus corpos, as suas roupas, as suas alegrias e decepções. São personagens reais, com nomes reais e histórias reais. Voltamos atrás no tempo e situamo-nos no espaço juntamente com elas. Não quis largar o Livro até saber o seu destino, porque este livro é também uma história de amor que nos mexe com as entranhas.
A obra está inesperadamente dividida em duas partes muito distintas. Se a primeira segue uma ordem convencional, a segunda é uma surpresa que ao início não sabia bem como digerir... parece escrita por outra pessoa, para outra pessoa... não estava preparada para isto. Pensei que era um engano, uma piada... mas talvez fosse apenas Peixoto a usar algum sentido de humor para nos abanar e voltar a situar, com alusões a outras realidades, com momentos de prosa poética muito dele, vinda de dentro. A dada altura a minha reacção era já de espanto e admiração. Gosto sempre quando um livro que não é suposto ser engraçado me faz rir desta maneira. Sinto isso com Saramago, por exemplo. É raro, fortuito e extraordinário. Já disse tudo, não?
I've read the Livro (Book, in english).
José Luís Peixoto instigates our curiosity even in the title of his last romance. But what book is worthy to be called Book? Is it a title that suffers from excessive simplicity or, on the contrary, from mania of grandeur?... It's one of those cases that should not be disclosed in the beginning, but should be discovered along the reading... although I have found, afterwards, some articles around the net that reveal a bit more, I enjoyed not knowing at the time and I still think that makes a difference to read this book without a net.
It was not the first book I read by Peixoto. I had already read Morreste-me, borrowed from a friend. Her father had recently deceased and for this and other more literary reasons she read it with extreme sensitivity, insisting later, passionately, to lend it to me, so I could read it too. I also had a contact with the Antídoto, from the album of the same name by Moonspell (Antidote), which tempted my curiosity by a respected author of the new generation, that listens to metal music, wears black, has tattoos and piercings.
I took the book Livro with some reluctance, because sometimes it's tiring to hear so many positive reviews from the same author, even if they seem fair. I dont know... everybody seems to me so eager to publicize the books by Peixoto that I end up questioning about it... are all this bows deserved after all? I had read a book and although I liked it I felt no kind of revelation.
I saw José Luís Peixoto live days before someone offered me Livro. Everyone seemed to gravitate around them and I probably was no exception. I was pleased to hear him. I wanted to read more.
Livro focuses the narrative on Portuguese emigration to France in the 1960's. It's all there: the scenes of the village, the dangerous journey to Paris in the days of dictatorship, the burst of April 25, the cherished and subsequent return trips, on vacation... I remember hearing about the famous houses of emigrants while I visited the village of my grandparents when I was young: I wondered about those big houses deserts the most of the year, heard the comments of the locals, the Frenchified expressions of the emigrants who weren't able to let go of the French language... The book portrays this reality in a profound and sensitive way, by a delightful prose in the details... every word seems to be in the right place. The narrative is raw and severe, but is sweet, affectionate and humored too. The characters live, jump off the pages in its full human dimension: we feel their bodies, their clothes, their joys and disappointments. They are real characters with real names and real stories. We go back in time and place ourselves in space along with them. I didn't let go the book until I know their destiny, because this book is also a love story that moves us.
The book is unexpectedly divided into two very distinct parts. The first one follows the conventional order, the second one is a surprise that at first I didn't quite know how to digest... it seems written by someone else, to someone else... I wasn't prepared for this. I thought it was a mistake, a joke... but maybe it was just Peixoto using a bit of sense of humor to shake us and re-locate us, with allusions to other realities, with a very poetic and personal prose, that comes from within. At one point my reaction was already of awe and admiration. I always like when a book that isn't supposed to be funny makes me laugh like this. I feel this with Saramago, for example. It's rare, incidental and extraordinary. I've said it all, no?
José Luís Peixoto instiga a curiosidade até com o título do seu último romance. Mas que livro se digna a chamar-se Livro? Será um título que peca pela simplicidade ou, pelo contrário, pela mania das grandezas?... É um daqueles casos em que convém não desvendar as razões, para que estas sejam descobertas ao longo da leitura... embora já tenha encontrado, depois, alguns artigos pela net que revelam mais, gostei de na altura não o saber e continuo a achar que faz toda a diferença ler este Livro sem rede.
Não foi o primeiro livro de Peixoto que li. Já tinha antes lido Morreste-me, emprestado por uma amiga a quem tinha recentemente falecido o pai e que por essa e outras razões mais literárias o lera com extrema sensibilidade, insistindo mais tarde, apaixonadamente, em emprestar-mo para que também o lesse. Tivera também um contacto com o Antídoto, a partir do álbum com o mesmo nome dos Moonspell, que me aguçou a curiosidade por um autor da nova geração tão respeitado, que se alia à música de metal, que veste de preto, que usa tatuagens e piercings (sim, talvez eu prefira gente estranha).
Peguei no Livro com alguma relutância, porque às vezes cansa ouvir tantas críticas positivas ao mesmo autor, ainda que à partida nos pareçam justas. Não sei... parece-me haver tanta vontade em publicitar os livros de Peixoto que acabo por desconfiar... será toda aquela vénia merecida afinal? Lera já um livro dele e embora tivesse gostado não senti nenhuma revelação.
Vi José Luís Peixoto ao vivo dias antes de me oferecerem o Livro. Toda a gente parecia gravitar à sua volta e eu provavelmente não fui excepção. Gostei de o ouvir. Fiquei com vontade de ler mais.
O Livro centra a narrativa na emigração portuguesa para França nos anos 60. Está lá tudo: as cenas da aldeia, a perigosa viagem rumo a Paris nos tempos da ditadura, o rebentar do 25 de Abril, as saudosas e sucessivas viagens de regresso, em férias... quem não se lembra das famosas casas de emigrantes que eram motivo de falatório e destaque entre as pessoas da aldeia que ficara para trás? Eu ouvia falar delas, quando ia, nova, à aldeia dos meus avós: questionava-me para que serviam aqueles casarões desertos a maior parte do ano, ouvia os comentários dos locais e as expressões afrancesadas dos emigrantes que já não conseguiam desabituar-se do francês preso à língua... o Livro retrata toda essa realidade de forma profunda e sensível, através de uma prosa deliciosa nos pormenores... cada palavra parece estar no sítio certo. A narrativa é crua e grave, mas também é doce, humorada, jocosa e afectuosa. As personagens vivem, saltam das páginas em toda a sua dimensão humana: sentimos os seus corpos, as suas roupas, as suas alegrias e decepções. São personagens reais, com nomes reais e histórias reais. Voltamos atrás no tempo e situamo-nos no espaço juntamente com elas. Não quis largar o Livro até saber o seu destino, porque este livro é também uma história de amor que nos mexe com as entranhas.
A obra está inesperadamente dividida em duas partes muito distintas. Se a primeira segue uma ordem convencional, a segunda é uma surpresa que ao início não sabia bem como digerir... parece escrita por outra pessoa, para outra pessoa... não estava preparada para isto. Pensei que era um engano, uma piada... mas talvez fosse apenas Peixoto a usar algum sentido de humor para nos abanar e voltar a situar, com alusões a outras realidades, com momentos de prosa poética muito dele, vinda de dentro. A dada altura a minha reacção era já de espanto e admiração. Gosto sempre quando um livro que não é suposto ser engraçado me faz rir desta maneira. Sinto isso com Saramago, por exemplo. É raro, fortuito e extraordinário. Já disse tudo, não?
I've read the Livro (Book, in english).
José Luís Peixoto instigates our curiosity even in the title of his last romance. But what book is worthy to be called Book? Is it a title that suffers from excessive simplicity or, on the contrary, from mania of grandeur?... It's one of those cases that should not be disclosed in the beginning, but should be discovered along the reading... although I have found, afterwards, some articles around the net that reveal a bit more, I enjoyed not knowing at the time and I still think that makes a difference to read this book without a net.
It was not the first book I read by Peixoto. I had already read Morreste-me, borrowed from a friend. Her father had recently deceased and for this and other more literary reasons she read it with extreme sensitivity, insisting later, passionately, to lend it to me, so I could read it too. I also had a contact with the Antídoto, from the album of the same name by Moonspell (Antidote), which tempted my curiosity by a respected author of the new generation, that listens to metal music, wears black, has tattoos and piercings.
I took the book Livro with some reluctance, because sometimes it's tiring to hear so many positive reviews from the same author, even if they seem fair. I dont know... everybody seems to me so eager to publicize the books by Peixoto that I end up questioning about it... are all this bows deserved after all? I had read a book and although I liked it I felt no kind of revelation.
I saw José Luís Peixoto live days before someone offered me Livro. Everyone seemed to gravitate around them and I probably was no exception. I was pleased to hear him. I wanted to read more.
Livro focuses the narrative on Portuguese emigration to France in the 1960's. It's all there: the scenes of the village, the dangerous journey to Paris in the days of dictatorship, the burst of April 25, the cherished and subsequent return trips, on vacation... I remember hearing about the famous houses of emigrants while I visited the village of my grandparents when I was young: I wondered about those big houses deserts the most of the year, heard the comments of the locals, the Frenchified expressions of the emigrants who weren't able to let go of the French language... The book portrays this reality in a profound and sensitive way, by a delightful prose in the details... every word seems to be in the right place. The narrative is raw and severe, but is sweet, affectionate and humored too. The characters live, jump off the pages in its full human dimension: we feel their bodies, their clothes, their joys and disappointments. They are real characters with real names and real stories. We go back in time and place ourselves in space along with them. I didn't let go the book until I know their destiny, because this book is also a love story that moves us.
The book is unexpectedly divided into two very distinct parts. The first one follows the conventional order, the second one is a surprise that at first I didn't quite know how to digest... it seems written by someone else, to someone else... I wasn't prepared for this. I thought it was a mistake, a joke... but maybe it was just Peixoto using a bit of sense of humor to shake us and re-locate us, with allusions to other realities, with a very poetic and personal prose, that comes from within. At one point my reaction was already of awe and admiration. I always like when a book that isn't supposed to be funny makes me laugh like this. I feel this with Saramago, for example. It's rare, incidental and extraordinary. I've said it all, no?
Bem, fiquei com vontade de o ler!
ReplyDeleteAna, adorei a tua crítica.
ReplyDeletePrimeiro porque tenho uma relação amor-ódio com Peixoto (do qual pouco li, apenas algumas crónicas e excertos aqui e ali). Não sei explicar o porquê, mas acho que um pouco por sempre ter sido do contra, quando a maré vai atrás, eu desconfio. Um pouco o que tu acabaste por referir neste teu post.
E em segundo lugar, porque me fizeste ter vontade de o ler :)
This novel sounds like an interesting read. I will have to check if it has been translated into English. Thank you for sharing. ~Val
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